16.03.22
Por duas vezes no espaço de 21 anos uma frase ecoou pela humanidade – “Hoje o Mundo mudou”.
Em 11 de Setembro de 2001 um grupo de extremistas islâmicos realizou um ataque às Torres Gémeas em Nova York e ao edifício do Pentágono em Washington, DC. Tal ato resultou na morte de cerca de 3.000 pessoas e de mais de 6.000 feridos.
Depois de tamanha catástrofe, o mundo realmente mudou, mas certamente que poderia e deveria ter mudado mais. Nesse terrível dia sentimos o espanto naquilo que imaginávamos ser impossível, ao mesmo tempo que tomávamos consciência da enormidade das nossas fraquezas. Se a nação mais poderosa do planeta podia ser atacada sem sequer poder tido a chance de se defender, então tudo se tornava possível neste mundo novo.
21 anos depois. 24 de Fevereiro de 2022. O exército da Federação Russa entra em território ucraniano dando início a uma invasão militar em larga escala.
O mesmo espanto, a mesma incredibilidade, a mesma sensação de como tão frágeis realmente somos.
Agora o alvo era um pais europeu, livre, independente e soberano. O mundo tinha mudado outra vez.
Se em 11 de Setembro de 2001 um país tinha sido vítima de um atentado terrorista protagonizado por um grupo de indivíduos, em 24 de Fevereiro de 2022 um país tinha agora sido vítima de um ato de terrorismo de estado. Desde Setembro de 1939, quando os exércitos nazis invadiram a Polónia dando início à segunda grande guerra mundial, que a Europa não vivia este tipo de agressão. O espanto era o fruto de nos termos habituado a ver as guerras dos outros nas terras dos outros.
Terrorismo de estado é a expressão exata para definir o ato de agressão a um estado soberano por parte de outro estado soberano sem que tivesse havido qualquer tipo de provocação por parte do estado atacado. Porém, este estado agressor tem um protagonista central, e esse protagonista não é o povo russo. Esse papel é interpretado por uma personagem, Vladimir Putin.
É preciso recuar no tempo para podermos contextualizar os acontecimentos presentes. Tal como Lenine, o mentor da revolução bolchevique em 1917, Putin tem como primeiro nome Vladimir, e foi na cidade batizada com o nome do ditador soviético que Putin nasceu, Leninegrado.
Foi nas ruas da cidade, hoje rebatizada como São Petersburgo, que o jovem Putin cresceu e ganhou fama de apreciador de brigas e de conflitos. O sonho de se tornar espião foi tornado realidade depois de várias tentativas frustradas de ingressar nos serviços secretos soviéticos.
Formado em direito e fluente em alemão foi enviado para Berlim Leste na antiga RDA onde realizou as primeiras missões nas fileiras do KGB. Aí permaneceu até 1989 ano da queda do Muro de Berlim. No seu caminho deixou um rasto de perseguições, repressão e morte junto daqueles que a todo o custo tentavam atravessar o muro na direção do ocidente.
Voltou então a São Petersburgo onde iniciou uma escalada meteórica na estrutura da FSB sucessora da KGB, isto num período em que o império soviético estava em total derrocada, culminando com o fim da União Soviética em 1991, e o consequente nascimento da Federação Russa.
Tal ascensão no poder foi alcançada através de toda a espécie de conspirações, traições e chantagens que sem qualquer escrúpulo o conduziram em 1999 ao cargo de primeiro-ministro da Federação Russa. O ex-espião, filho do império soviético tinha sobrevivido á queda do velho regime e crescia agora na nova Rússia.
Três semanas depois de ter sido eleito (a 16 de agosto de 1999), Vladimir Putin, avançou com uma ofensiva na Chechénia, uma república da Federação Russa na região do Cáucaso. O avanço foi justificado por um ataque a Moscovo, no qual morreram 300 civis russos, e que Putin atribuiu aos separatistas da Chechénia. Na altura todos acreditámos neste argumento, e depois... onde era a Chechénia? Quem eram os Chechenos?
Tinha começado a segunda guerra da Chechénia (na primeira, a Rússia do presidente Boris Iéltsin, tinha saído derrotada pelos separatistas Chechenos. Putin tinha iniciado a sua campanha de guerra.
Depois de 10 anos de bombardeamentos indiscriminados sobre alvos civis e militares que resultaram em centenas de milhares de mortos, o país ficou sob o controlo de um Presidente pró-russo. Entretanto, Alexander Litvinenko, um ex-agente do Serviço Federal de Segurança russo, revelava as atrocidades cometidas neste conflito e acabou morrendo envenenado no Reino Unido. Na Rússia de Putin, nada melhor que uma campanha militar vitoriosa para vingar uma anterior derrota e assim acelerar a ascensão na escala do poder. No ano de 2000, Vladimir Putin foi eleito Presidente da Federação Russa.
Geórgia, 2008. Crimeia, 2014. Os mesmos pretextos, os mesmos métodos, os mesmos resultados. Duas invasões militares a dois países soberanos. No caminho ficou um rasto de destruição, de mortos e de desalojados. Os objetivos foram, entretanto, alcançados. Duas nações soberanas tinham sido expolidas dos seus territórios. A península da Crimeia fazia agora parte integrante da Federação Russa e no caso da Geórgia deu-se por parte do governo russo o reconhecimento da independência de duas republicas - a Abecásia e a Ossétia do Sul.
Ainda em 2014 nas regiões do leste da Ucrânia, Donetsk e Lugansk surgiu uma revolta de separatistas que ao declararem a independência, iniciaram um conflito com o governo de Kiev que dura até hoje, e que serviu de novo pretexto da invasão que está a decorrer em território ucraniano.
A justificação apresentada por Moscovo para a invasão da região do Donbass tinha a ver com a necessidade de restabelecer a paz na região. Para isso um exército de 130.000 homens foi concentrado nas fronteiras da Ucrânia com a Bielorrússia e com a Federação Russa. Na impossibilidade de manter esta argumentação falsa, Putin deixou então cair a máscara e numa interpretação deturpada da história argumentou que o estado ucraniano é uma ficção e que a sua existência se deve apenas a uma invenção de Lenine. Nestas afirmações não fica claro se é a mentira que se sobrepõe à ignorância ou o contrário.
Nas aulas de história dadas pelos verdadeiros historiadores, aprende-se que Kiev está na origem da civilização russa e não o contrário. Foi no século V que tribos eslavas orientais se reuniram nas margens do rio Dnieper, e juntamente com viajantes vikings fizeram prosperar esta região dando início a relações com Bizâncio gerando assim as raízes dos povos russo, ucraniano e bielorrusso. Kiev tornou-se o coração da Santa Rússia, herdeira da segunda Roma (Constantinopla). O ocidente da Ucrânia em meados do século XIV teve a presença de polacos e lituanos, tendo esta região no final do século XVIII sido parte integrante do Império Austro-húngaro. Voltando ao domínio polaco no final da primeira grande guerra, a Ucrânia torna-se independente já no início da segunda grande guerra e no final da mesma viria a ser integrada na União Soviética como república soviética da Ucrânia. Finalmente a libertação do jugo soviético em 1991 com a queda da ex. URSS.
A soberania de Direito da Ucrânia é antiga e inequívoca tendo o estado ucraniano raízes históricas complexas a partir de influencias eslavas e central europeias. Até a própria língua ucraniana tem raízes próprias, próximas da língua russa, do polaco e do servo-croata. A cidade de Kiev é uma das mais antigas cidades europeias sendo uma referência da rica cultura eslava.
É muita história para poder ser reduzida apenas a uma invenção de um homem.
Vladimir Putin num discurso delirante revelou ao mundo as suas verdadeiras intenções – fazer desaparecer da Europa um povo, uma cultura e uma sociedade com identidade própria.
Á medida que o exército russo avança em território ucraniano os argumentos para a agressão sucedem-se. De missão de paz à necessidade de eliminar o nacionalismo nazi presente na sociedade ucraniana. Do desarmamento do exército ucraniano, à imposição de um estatuto de neutralidade da Ucrânia. E finalmente o perigo que a Ucrânia representa para a Rússia, devido á alegada presença de armas nucleares em solo ucraniano.
Conforme os argumentos vão sendo mais fortes, maior é forma indiscriminada dos bombardeamentos. Ao que parece os insurretos e os nazis escondem-se em escolas, hospitais e jardins de infância. A tática de guerra de terra queimada usada na Chechênia é agora aplicada nas cidades ucranianas.
Todos estes falsos argumentos escondem a verdadeira razão para a invasão. Putin não tem medo nem dos nazis ucranianos nem das supostas armas nucleares presentes na Ucrânia. Maior ameaça para Putin do que ter a NATO nas suas fronteiras, é na verdade, ter a democracia perto de casa.
É a democracia que assusta Putin. Ele sabe que se o povo russo tiver a oportunidade de saborear um leve travo de democracia, então o seu fim como todo poderoso é certo. A sua sobrevivência política e todo o poder que daí ade vem, certamente estariam condenados. A tirania e a autocracia são incompatíveis com a democracia.
Apesar do enorme desequilibro de forças militares envolvidas nesta guerra, a derrota está mais perto de Putin do que a vitória. A corajosa cidade de Kiev poderá até cair sob os misseis russos – o exército russo tem fortes possibilidades de vencer a batalha de Kiev, mas Putin, com certeza que sairá derrotado da guerra da Ucrânia.
Esta guerra faz-se não somente nas vilas e cidades ucranianas. Faz-se também em todas as cidades europeias e muitas outras pelo mundo. Quando os políticos europeus hesitavam nas sanções a aplicar ao regime russo, o povo se indignou e desceu às ruas. A força da opinião pública sobre os governos atingiu tais demissões que em cinco dias foram tomadas medidas totalmente inéditas na história da política europeia moderna.
A esta força chama-se democracia. É desta força que o Sr. Putin tem medo.
Sem dúvida que este conflito tem um desfecho imprevisível, tanto no tempo como no modo. O que é perfeitamente previsível é o facto de que o futuro da Ucrânia passa indiscutivelmente por uma maior aproximação ao ocidente. Mesmo que se chegue a um entendimento pelo qual a Ucrânia se comprometa a não aderir NATO, o país estará efetivamente de costas voltadas para a Federação Russa, e será sempre um vizinho fortemente armado.
As pretensões russas no sentido de querer reduzir a presença da NATO junto das suas fronteiras, estão desde já, mesmo sem este conflito ter terminado, fortemente comprometidas. Depois desta agressão russa, inesquecível e imperdoável por parte do povo ucraniano, a Ucrânia nunca será um país neutro em relação à Federação Russa. Por outro lado, países como a Suécia e a Finlândia, já ponderam a sua adesão á NATO, independentemente de facto de já possuírem exércitos próprios de grande poderio.
O reforço das forças da NATO nos países membros da aliança que partilham fronteiras com a Federação Russa, já está em marcha, e desta vez o argumento russo de que isto representa uma ameaça, já não tem qualquer aceitação. Afinal, quem com esta ofensiva tomou uma posição de força e de agressão foi a Rússia.
O Kremlin está neste preciso momento histórico a pôr em prática o teor do recente documento resultante do seu concelho estratégico, onde está escrito que o seu principal objetivo estratégico é recuperar as fronteiras originais da Federação em 1998. Não se trata de especulação, está realmente escrito no documento oficial do Kremlin. Estamos a assistir à materialização de um conjunto de ações por parte da Federação Russa, no sentido de inverter aquilo a que Vladimir Putin afirmou ser – a maior tragédia geopolítica do século XX – a queda da URSS.
A grande questão que se coloca é a seguinte: Será o povo russo capaz de ele próprio derrubar Putin? Os grandes impérios corroeram-se internamente até caírem. A história, ao contrário do que parece, não se repete. O que se repetem são as circunstancias da história, a semelhança dos acontecimentos. No mundo contemporâneo, os acontecimentos dão-se muito rapidamente, basta observar as últimas semanas. Não sabemos quanto tempo vai durar o “império” de Vladimir Putin. Certamente que vai durar muito menos do que o de Vladimir Lenine.
O velho continente continua em mudança, e com ele o mundo muda também.