03.04.22
No contexto do conflito na Ucrânia, surgiu uma corrente de opinião que se traduz na seguinte frase: “Deriva autoritária e de imposição do pensamento único”.
Se desconhecêssemos a origem da frase, poderíamos ser induzidos a acreditar que a mesma se contextualizava em sociedades autocratas e repressivas do pensamento livre. Como a origem é sobejamente conhecida, podemos concluir que os autores estão claramente confundidos com tal raciocínio.
São exatamente os mesmos que beberam do dogma Marxista-leninista e que até hoje, passados 33 anos da queda do muro, continuam com a mesma intoxicável adição. E por incrível que pareça, são os mesmos que se recusam a condenar um regime que de cariz soviético nada tem, mas que de uma forma inexplicável, mas talvez romântica os continua a atrair.
Não sei se é por esse regime partilhar em boa parte do mesmo espaço geográfico da “saudosa” URSS, ou se é o nome Kremlin que ainda faz disparar as palpitações dos corações dos velhos adictos. Mas estou desconfiado que tem tudo a ver com o conteúdo da referida frase: “Deriva autoritária e de imposição do pensamento único”.
É que o conteúdo da mesma, reflete na plenitude a essência e âmago dos regimes de Joseph Staline e de Vladimir Putin. Ambos autoritários, e ambos acérrimos defensores do pensamento único.
Ao contrário destes regimes, castradores do mesmo povo e da mesma sociedade, as sociedades ocidentais elegeram como regime preferencial as democracias liberais. No lugar do autoritarismo, escolhemos o pluralismo, e como pensamento preferimos aquele que é livre em detrimento do único.
Neste tipo de sociedade, os cidadãos não são perseguidos nem presos por escreverem em blogs ou se manifestarem nas ruas em favor de sistemas políticos como o da Federação Russa ou o da República Popular da China. Podem não atrair muitas simpatias, mas preso ninguém vai.
É este um dos privilégios oferecidos pelo tal ocidente que na boca de alguns quer impor o “Pensamento único”. Não há nada mais confortável do que nos sentarmos num sofá ocidental, num livre e democrático país, e nos darmos ao luxo libertino de dizermos mal de quem queremos e de quem nos apetecer; principalmente das autoridades do próprio país, que por não serem autoritárias não nos enchem de porrada nem nos empurram para dentro de uma carrinha blindada com destino incerto.
É este conforto que é reservado aos corajosos ocidentais contestatários do mundo ocidental. Cobardes são aqueles que nas ruas de Moscovo levantam a voz contra um sistema que por norma os tira de circulação, por vezes definitivamente.
Como tal, a dita frase assenta muito mal a quem a profere. Se houvesse da mesma parte, suficiente coragem intelectual, a frase adequada seria: “Já que os EUA invadiram por duas vezes o Iraque, a Rússia tem todo o direito de invadir a Ucrânia, de arrasar cidades inteiras e de massacrar homens, mulheres e crianças”.
Isto sim! Isto é que é defender o pensamento pluralista. E quem se atrever a criticar esta guerra sem mencionar todas as outras em que o mundo ocidental teve parte interventiva, é formalmente acusado de sofrer da síndrome do pensamento único e autoritário.
Como já ninguém liga nenhuma a estes formuladores de doutrinas enviesadas, esta síndrome vai ser inóculo na nossa sociedade. Toda a gente que não usa trela dogmática, desde a esquerda à direita democrática, vai continuar, não com um pensamento único, mas sim com pensamento livre e democrático a condenar com todas as suas forças esta agressão à civilização, que antes de ser ocidental, é humana.
Infelizmente esta guerra não tem fim à vista. Vamos continuar a ouvir bem alto os gritos de revolta de quem moralmente se sente ofendido com os crimes que estão a decorrer na Ucrânia, e bem lá no fundo vamos também continuar a ouvir o leve sussurro daquelas gargantas apertadas pelo garrote ideológico bolorento e obsoleto. Pelo menos assim será durante os próximos 4 anos. Depois disso, o sussurro será mesmo silenciado. Silenciado não por qualquer regime autoritário ou pelos arautos do pensamento único, mas sim pelo pensamento livre, democrático e ocidental, que naturalmente lhes vedará o acesso ao maior símbolo da nossa democracia, o parlamento.
Paradoxalmente, podem vir a fazer falta, já que em democracia, até os não democratas têm direito à palavra e à opinião. Contudo, para legitimarem essa presença, seria necessária a agilidade intelectual e política para aliviar um pouco que fosse o referido garrote que os impede de não irem além de serem possuidores de um único pensamento, o deles.
Eu, com toda a frontalidade afirmo: “Apesar dos defeitos e de todos os erros cometidos pelo mundo ocidental, não trocaria um minuto de vida passado neste mundo por 100 anos de Rússia ou de China. São escolhas. E a liberdade de escolha é o primado da democracia.